Informação e Conhecimento

Extraído do livro “O Mundo assombrado pelos demônios”

desconexao.jpgQuando desci do avião, uma pessoa me esperava, tendo nas mãos um papel com o meu nome. Era o motorista que os organizadores da conferência de cientistas na TV amavelmente haviam me providenciado. “Permite que lhe faça uma pergunta?” ele disse, enquanto esperávamos minha bagagem. “Não dá confusão você ter o mesmo nome do daquele cientista?” Eu não entendi. Estaria ele me gozando? “Sou eu o cientista”, respondi. Ele sorriu: “Desculpe. Pensei que você tinha o mesmo problema que eu”. Estendeu a mão e se apresentou: “Meu nome é William F. Buckley”. O nome era muito parecido com o de um polêmico entrevistador de televisão. Já no carro, me confessou que estava encantado por saber que eu era “aquele cientista” e indagou se havia algum inconveniente em que me fizesse algumas perguntas sobre ciência; mas não foi sobre ciência sobre o que falamos.

Ele estava interessado em OVNI’s, bola de cristal, astrologia etc. Falava dessas coisas com genuíno entusiasmo. Não me restava outra saída senão desiludi-lo. “As evidências são escassas”, repetia. “Para isso, existem explicações muito mais simples.” Sua expressão ia ficando mais sombria. Eu não apenas atacava a pseudociência como algumas de suas convicções mais íntimas. Não obstante, a autêntica ciência trata de muitas coisas que são tão ou mais emocionantes e misteriosas, que representam um grande desafio intelectual e que, além disso, estão muito mais próximas da verdade. Por exemplo, saberia ele algo das moléculas da vida existentes na fria e tênue atmosfera gasosa interestelar? Já teria ouvido falar das pegadas de nossos antepassados, impressas há 4 milhões de anos nas cinzas vulcânicas? Que saberia da origem da cadeia de montanhas no Himalaia, que se elevou quando a Índia se uniu à Ásia? Teria conhecimento de como os vírus destróem as células, ou de como o rádio pode ajudar a descobrir inteligências extraterrestres ou informações sobre as antigas civilizações?

O motorista Buckley, um homem realmente inteligente e curioso, não tinha ouvido falar quase nada sobre ciência moderna. Ele queria saber. Só que toda essa ciência foi filtrada antes de chegar ao seu conhecimento. A sociedade somente permitia que ele tivesse acesso a gotas de engano e confusão. Tampouco lhe haviam ensinado a separar ciência autêntica e sua imitação barata. Nos E.U.A., há gente inteligente, esforçada, que tem verdadeira paixão pela ciência. Mas é uma paixão não correspondida. Um estudo recente indica que 94% dos americanos são ignorantes no assunto. Curiosamente, vivemos numa sociedade dependente da ciência e da tecnologia, mas que não sabe quase nada disso. Trata-se de uma clara receita para o desastre. É perigoso e tolo continuar a ignorar o aquecimento da Terra, ou o buraco na camada de ozônio, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida etc. Devido ao baixo índice de natalidade nas décadas de 1960 e 1970, a Fundação Nacional para a Ciência prevê para o ano de 2010 um déficit de quase 1 milhão de cientistas e engenheiros. De onde eles virão? O que fazer com a fusão, com os supercomputadores, o aborto, as reduções de armas estratégicas, as drogas a TV de alta definição, a segurança no tráfego aéreo, os aditivos alimentares, os direitos dos animais, a supercondutividade, os mísseis da Guerra nas Estrelas, a chegada a Marte, a descoberta de remédios para a AIDS e o câncer? Como poderemos decidir a política nacional se não entendemos as questões fundamentais?

Sei que a ciências e a tecnologia não são apenas uma fonte de maravilhas. Nossos cientistas inventaram os arsenais nucleares e fabricaram 60.000 unidades dessas armas mortíferas. A tecnologia produziu a talidomida, os clorofluorcarbonos, o agente laranja e indústrias tão poderosas que podem destruir o clima do planeta. São razões suficientes para que as pessoas se sintam intranqüilas em face da ciência e da tecnologia. Mas não dá para voltar atrás. Não podemos chegar simplesmente à conclusão de que a ciência põe muito mais poder nas mãos de tecnólogos moralmente fracos e corruptos ou nas de políticos com delírios de grandeza… e nos livrarmos dela. Pois os avanços na Medicina e na agricultura salvaram mais vidas do que se perderam em todas as que se perderam em todas as guerras da história. A ciência é uma faca de dois gumes. Seu imenso poder obriga a todos – incluindo os políticos – a prestar mais atenção às conseqüências a longo prazo da tecnologia, sem os apelos fáceis do nacionalismo e do chauvinismo. Os erros estão custando caro demais. A ciência é muito mais que um corpo de conhecimentos. É uma maneira de pensar. A ciência convida a admitir os fatos, mesmo que não estejam de acordo com as nossas idéias. Ela nos aconselha a incluir nos cálculos hipóteses alternativas e a considerar qual delas se acomoda melhor aos fatos. Estimula o equilíbrio sutil entre a abertura a novas idéias, ainda que heréticas, e o exame rigorosamente cético de tudo – tanto das inovações como dos conhecimentos já estabelecidos. É uma ferramenta essencial para a democracia em época de mudanças.

Daí não se tratar apenas de formar mais cientistas, mas também de aprofundar a compreensão pública da ciência. A situação é crítica. Em algumas manchetes de jornais já se lê: “Nosso conhecimento científico está abaixo do mínimo”. Menos da metade dos americanos sabe que a Terra gira em torno do Sol e que leva um ano para percorrera sua órbita, um fato descoberto há vários séculos. Em testes realizados com jovens de 17 anos, de vários países, os americanos ficaram em último lugar em Álgebra. Em provas similares, as crianças americanas acertaram 43% das respostas contra 78% no caso dos alunos japoneses. Nas provas de Química realizadas em 13 países, os E.U.A. ficaram em antepenúltimo lugar. Cerca de 25% dos canadenses de 18 anos sabiam tanto quanto 1% doa americanos que já cursavam o segundo ano da Faculdade de Química.

Enquanto 22% dos estudantes americanos confessam não gostar da escola, apenas 8% dos coreanos dizem o mesmo. O que está acontecendo? Na década de 1930, durante a Grande Depressão, os professores tinham segurança no emprego, bons salário e respeitabilidade. O ensino era admirado em parte porque se reconhecia no estudo o caminho para sair da pobreza. Hoje, resta pouquíssimo disso. O ensino de Ciências (como nas outras disciplinas) tornou-se insuficiente e pouco estimulante, os professores têm pouco ou nenhum preparo em seus campos e muitas vezes nem sequer conseguem distinguir entre ciência e pseudociência. E os melhores sempre conseguem empregos mais bem pagos em outra parte.

Os estudantes americanos de curso médio gastam apenas 3 horas e meia por semana com lições de casa. O tempo total dedicado ao estudo, dentro e fora da escola, é de vinte horas semanais. Comparando, os japoneses da quinta série estudam cerca de 33 horas por semana. Isto não quer dizer que a maioria dos estudantes americanos seja estúpida. Se não estudam, é em parte porque não costumam receber benefícios palpáveis quando o fazem. Nos primeiros oito anos depois de formados, não auferem nenhuma vantagem econômica por saber mais Língua, Matemática ou Ciências. Em compensação, fábricas correm o risco de sair do mercado porque seus operários iniciantes mal sabem fazer contas. Uma importante indústria eletrônica informa que 80% doa candidatos a um emprego não conseguiram passar no exame de Matemática da quinta série do primeiro grau. Os pais deveriam perceber que o sustento de seus filhos pode depender de conhecimentos de Matemática e Ciências. Deveriam também incentivar os professores a dar cursos avançados, compreensíveis e bem dirigidos, e persuadir os filhos a participar deles. Deveriam ainda limitar o número de horas que as crianças passam em frente da televisão.

Nos E.U.A., só os homens jovens, brancos, de bom nível econômico e que cursaram colégios respeitados possuem um razoável conhecimento científico. É verdade que os estudantes negros e hispânicos obtêm agora melhores resultados nas provas de Ciências que no final da década de 1960. Mas ainda existe um abismo separando a média dos alunos brancos e negros em Matemática. Já os universitários negros, filhos de pais também universitários, são tão bons quanto os brancos da mesma condição. Seriam igualmente necessários estímulos econômicos e morais para que os cientistas dedicassem mais tempo à formação do público, mediante conferências, artigos em revistas e jornais, entrevistas na televisão etc. Isso por sua vez exigirá dos cientistas um esforço maior para se tornarem compreensíveis e interessantes. A mim me parece estranho que alguns cientistas, que dependem de dinheiro público para as suas pesquisas, se mostrem arredios em explicar à população o que fazem. Por outro lado, praticamente todos os jornais têm uma seção diária de astrologia. Mas, quantos têm uma seção diária de ciência? Quando eu era jovem, meu pai trazia todo dia para casa um jornal onde lia avidamente os resultados dos jogos de beisebol. Os textos eram cifrados e áridos, mas eu os entendia perfeitamente. Às vezes, também ficava aprisionado no mundo das estatísticas do esporte. Hoje reconheço que me ajudaram a entender os decimais.

Vejamos agora as páginas econômicas. Não se encontra nelas nenhuma introdução esclarecedora nem alguma nota explicativa ao pé da coluna nem o significado das abreviações utilizadas. O leitor ou nada ou afunda. Mesmo assim, as pessoas lêem os tijolaços repletos de estatísticas. Trata-se apenas de uma questão de motivação. Por que não podemos fazer o mesmo com a Matemática, as Ciências e a tecnologia? O meio mais eficaz para incrementar o interesse pela ciência é a televisão. Não obstante, a TV exibe grande quantidade de pseudociência, um volume aceitável de temas de Medicina e tecnologia, porém muito raramente algo sobre ciência, especialmente nas grandes redes comerciais. Por que não existe um programa cujo herói seja alguém dedicado a explicar o Universo?

Os projetos mais excitantes de Ciência e tecnologia despertam o interesse dos mais jovens. O número de PhD’s em Ciência chegou ao ápice na época do projeto Apolo (a ida do homem à Lua) e caiu posteriormente. Este é um importante efeito secundário potencial de projetos como o envio de seres humanos a Marte ou a operação de aceleradores de partículas para explorar a estrutura da matéria ou ainda o programa destinado a traçar o mapa genético humano. De vez em quando gosto de dar uma aula para crianças pequenas. Muitas delas são curiosas, fazem perguntas provocativas e demonstram grande entusiasmo pela ciência. Em comparação, quando falo para estudantes de nível médio, as coisas mudam. Quando adolescentes, os estudantes aprendem a memorizar fatos e datas, mas em geral perdem a alegria de fazer novos descobrimentos, de encontrar a vida por trás dos fatos. Desistem de fazer perguntas que consideram estúpidas, aceitam respostas inadequadas, não levantam questões derivadas do tema e vivem olhando para os lados, em busca da aprovação de seus companheiros. Algo aconteceu entre a primeira e a última série – e não foi exatamente a puberdade.

Eu acreditava que isto ocorria em parte por causa da pressão dos colegas para “não sobressair” (exceto nos esportes); em parte, porque a sociedade ensina aos jovens a buscar o sucesso a curto prazo; e, em parte, por causa da impressão de que as Ciências e a Matemática não servem para comprar um carro esporte. Há algo mais, porém: muitos adultos ficam sem saber o que fazer quando os jovens lhes fazem perguntas científicas. As crianças indagam por que o Sol é amarelo, o que é um sonho, até que profundidade se pode mergulhar num buraco, quando é o aniversário do mundo ou por que temos dedos nos pés. Elas logo se dão conta de que essas perguntas aborrecem os adultos. Algumas situações desse tipo e pronto – mais outra criança perdida para a causa da ciência. Não posso compreender por que os adultos devam aparentar onisciência diante uma criança de 5 anos. Que há de errado em admitir que não sabemos? Se não temos uma idéia da resposta, podemos recorrer a uma enciclopédia. Também podemos dizer: “Não sei, talvez ninguém saiba. Pode ser que você seja o primeiro a encontrá-la quando crescer”.

Mas, além de estimular as crianças, temos que lhes dar as ferramentas necessárias para que saibam separar o joio do trigo, inquieta-me a perspectiva de uma geração incapaz de perceber a diferença entre realidade e fantasia, agarrada cheia de esperanças às suas bolas de cristal em busca do bem-estar. Gostaria de salvar o motorista Buckley que foi me esperar naquele aeroporto americano e milhões de pessoas como ele. Acho que precisamos e merecemos conviver com cidadãos de inteligências despertas e dotados ao menos de conhecimentos básicos sobre como funciona o mundo. Estou convencido de que o conhecimento da ciência é mais importante para a segurança nacional do que meia dúzia de armamentos estratégicos. Deveríamos estar em alerta vermelho e fazer soar um alarme urgente diante do desempenho pior que o medíocre em Ciências e Matemática dos adolescentes americanos e diante da apática, generalizada ignorância dos adultos.”

Na página a seguir, tecerei comentários sobre o este excerto . Acompanhe-nos.

3 comentários em “Informação e Conhecimento

  1. Texto espetacular!
    E comentário melhor ainda!
    Tenho 17 anos e, quando disse que queria fazer Geografia ou História – ou os dois – para lecionar, a minha família e todos os meus conhecidos disseram que eu estava doida! Afinal, quem quer ganhar pouco?
    Eu sempre fui a CDF – de óculos – da sala, e por isso nunca fui muito popular. Quer dizer, em dia de avaliação, eu era a mais querida da sala.
    O texto e o comentário me incentivaram – como cada texto que li deste site – a estudar, muito, bastante, e ser mais do que uma cidadã comum que assiste Big Brother.
    E eu vou ser.
    Vou estudar muito.
    E não vou deixar que os outros pensem por mim. Afinal, eu tenho um cérebro!
    Abs :grin:

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  2. Texto espetacular!
    E comentário melhor ainda![2]

    Hoje tenho 20 anos, e não vou mentir: Comecei a me dar por gente aos 18.
    Sempre fui observador com tudo. Desde criança frequentava celebrações e outras coisas religiosas e não entendia bulhufas do porquê aquilo. Eu apenas participava e observava. Me sentia como seu algo me impedisse de mergulhar a fundo naquilo e esquecesse de questiona-lá. Como muitos (eu acho) passei a me interessar em saber a mais sobre tudo e ignorar por completo coisas religiosas, exatamente pelas/pelos motivos (tosqueiras) que a própria religião impõe.
    Hoje percebo o quanto eu fui idiota em ter perdido tanto tempo me abstendo dos fatos e apenas deixando rolar. E hoje graças ao tio andré (desculpem a liberdade, mas o meu primeiro contato com a ciência foi com ele), percebo que não importa que, o que façamos seja pouco, o que importa são nossas atitudes inicias em fazer a diferença. Pra quem acredita que a vida se faz agora e, não em uma vida outrora, devemos fazer a diferença, mesmo que pareça ser insignificante agora, mas daqui alguns anos – talvez decadas – essa diferença evolua, e com o tempo se torne uma peça pivotal na vida das pessoas. Milhares de vidas futuras agradeceram a atitude inicial de poucos – como nós agradecemos agora aos poucos do passado – e viverão uma vida mais justa e, devidamente mais intelectual.
    Precisamos compartilhar informoção e, não a reter como um covarde e egoísta que só pensa na própria bunda – como 99% da população faz.

    Chega a ser um desrrespeito uma pessoa ter um computador em casa e não saber como usá-lo de forma devidamente cabível. Muitas pessoas desconhecem as capacidades que um computador com internet possui, deixando-o apenas para as fábricas de ignorantes: Orkut; msn… (embora tenham um pequeno valor aproveitável).
    Muitos ciêntistas se empenharam em mostrar a verdade e trazer conforto e estabilidade à vida da humanidade, e não serei ingrato à isso. Devemos dar continuidade ao esforço dessas pessoas que dedicaram o seu tempo de vida – não só para a propria vida – como também primeiramente, para a vida dos outros.

    Aquele que domina os outros é forte. Aquele que domina a si mesmo é poderoso.

    Doravante, jamais esquecerei essas palavras

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  3. Reverências, André. Eu adoro quando o professor deixa alguma remissividade, para que eu possa acessar um complemento sobre o assunto tratado em aula. Tenho um professor, o Dr Brunoro, membro da rede capixaba de metrologia, que é exemplo de remissor. Mas, professores assim, tive poucos na vida. Tenho outra professora, da qua não quero citar o nome, cujos slides-base das aulas eu sempre tenho que editar. Ela usa miguxês; pasme. Errou até o nome Nernst, várias vezes. Até a monitora dela sabia escrever, mas ela nem pronunciava direito.
    Tal você já disse, em tempos, que, emprego público como professor, atrai muitos mercenários que só pensam em emprego vitalício. Você disse isso no artigo da professora inglesa que fora demitida por insurgência. Fato é que o professor, muitas vezes, tem uma jornada que o seduz a secundarizar o suporte ao aluno.
    Infelizmente, este país não tem nem infra nem superestrutura para sustentar o desenvolvimento de tecnologia avançada. Não que seja traumático – pelo menos para quem tem mentalidade apreciável – tornar-se professor por falta de emprego em desenvolvimento/pesquisa; estou apenas citando outro fato.
    Conquanto nossa realidade seja hostil, fico muito feliz em ver atitudes feito a sua, com sua excelente página eletrônica de ceticismo. Após ler isto, não decidi tornar-me professor, mas quero ser um reacionário fomentador da Ciência, mesmo que precise migrar para o exterior para ser pesquisador.

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