Acaso geográfico explica diferenças étnicas

Por Reinaldo José Lopes

Se você precisa de alguém para jogar quantidades monumentais de esterco no ventilador, James “Honest Jim” Watson costuma ser o homem ideal para o serviço. Na semana que passou (18/10) voltamos a ter abundantes motivos para assim classificar esse vencedor do Nobel e co-descobridor da estrutura do DNA, com seus 79 aninhos (mas corpinho de 78 e cabecinha de, bem, uns 150). A não ser que você tenha passado os últimos dias em Marte, deve ter ficado sabendo do bafafá (Leia sobre isso aqui).

O americano Watson foi manchete no mundo inteiro ao declarar a um jornal britânico que os problemas sociais e econômicos da África poderiam ser explicados, em parte, por uma possível diferença inata de inteligência entre os africanos e o resto da população mundial, e que qualquer um que já tivesse lidado com empregados negros sabe que eles não são lá muito espertos.

Não tem nada de muito novo no que Watson vomitou, infelizmente. Digo isso de coração partido, mas o nascimento da genética como ciência, no fim do século 19 e começo do século 20, esteve muito ligado a idéias racistas e à defesa da eugenia, e é bem possível que Watson esteja apenas falando como alguém se que insere dentro dessa tradição intelectual, e não como alguém particularmente preconceituoso ou malevolente. A questão é: por mais politicamente incorreto que Honest Jim seja, ele tem alguma base científica para dizer o que está dizendo?

Creio que, se pesarmos o melhor conjunto possível de evidências, a resposta é um “não” de estourar os tímpanos. Mas não pretendo seguir o caminho tradicional para apoiar essa idéia. Esta coluna não é sobre a dificuldade de medir inteligência com critérios numéricos (em resumo: o QI é uma farsa). Não é sobre a falta de controle em experimentos com humanos (inclusive os eticamente complicados, do tipo forçar uma família branca a criar um negro e uma negra a criar um branco e então comparar os resultados). Não quero abordar nem mesmo o impacto de fatores ambientais e econômicos, e até o do ambiente uterino diferenciado, no desenvolvimento da inteligência. A minha cotovelada em Watson vai por outro caminho e tem três bases: formato dos continentes, agricultura e pecuária.

Acredite: do ponto de vista científico, essas coisas ajudam muito mais a explicar porque brancos e asiáticos do Extremo Oriente (e não negros ou indígenas) são os grupos étnicos mais poderosos do mundo hoje do que as intermináveis tabelas de testes de QI das quais Watson tanto gosta. Temos razões um bocado boas para achar que acidentes da biogeografia da Terra, e não alguma vaga superioridade intelectual nascida dos genes, transformaram alguns povos em dominadores e outros em dominados. Com o perdão da expressão, não foi mérito – foi puro rabo mesmo.

Sementes – e cascos – da vitória

Meu guru nessa visão subversiva da saga humana é o biogeógrafo americano Jared Diamond, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Com seus alertas sobre os riscos da degradação ambiental para a humanidade, o último livro de Diamond, “Colapso”, andou fazendo sucesso. Mas sua melhor obra continua sendo mesmo “Armas, Germes e Aço”, que por coincidência está fazendo dez anos de publicação. No livro, Diamond faz a mãe de todas as perguntas quando se trata de história: porque algumas civilizações triunfam e outras são esmagadas? Existe até mesmo um documentário em vídeo sobre ele.

A resposta “proximal”, ou seja, a que engloba as causas mais imediatas do triunfo civilizacional, está no título do livro, e não é preciso ser o gênio da lâmpada para formulá-la. Os povos que triunfaram tinham melhor armamento, transmitiam doenças mais ferozes e contavam com melhor tecnologia. Os portugueses tinham espadas de aço, caravelas, canhões e a varíola (entre outras delícias do mundo microbiano); os tupinambás só contavam com flechas e tacapes e não tinham uma epidemia que prestasse para transmitir. “Dã”, diria você.

Por sorte, Diamond não se limita à resposta proximal. “OK”, pergunta-se ele, “quais foram as causas últimas que fizeram com que só alguns povos tivessem tudo isso? Como foi possível ‘semear’ armas, germes e aço ao longo da história?”

Anote estas três palavrinhas: “produção de alimentos”. Epidemias malvadonas, tecnologia, sociedades altamente organizadas e eficientes e armas letais são claramente o resultado, em última instância, da capacidade de produzir alimentos numa escala bem mais elevada do que a natureza, sem uma mãozinha humana, é capaz de providenciar. As sociedades que foram as pioneiras em desenvolver ou adotar a agricultura e a criação de grandes animais domésticos tiveram, portanto, uma vantagem inicial que foi se tornando cada vez mais difícil de suplantar.

Não é difícil entender o porquê disso. Até cerca de 12 mil anos atrás, não havia uma única sociedade no planeta que dependesse da produção de alimentos para sobreviver. Éramos todos caçadores-coletores, um modo de vida que ainda existe entre tribos isoladas da Amazônia, da África Equatorial e da Nova Guiné. Em muitos aspectos, a vida de caçador-coletor era mais equilibrada e menos estressante do que a dos agricultores e pecuaristas pré-modernos, mas ela tem uma desvantagem óbvia: os recursos naturais não-cultivados, em geral, alimentam muito menos gente por hectare. Enquanto só 0,1% da biomassa de um ambiente natural costuma ser comestível para seres humanos, a agropecuária pode fazer esse potencial subir para 90%.

Mais comida por hectare significa mais gente por hectare. Qualquer tribo de agricultores primitivos levava, portanto, uma vantagem demográfica indiscutível sobre seus vizinhos que ainda viviam da caça e da coleta. E a densidade de gente tem outros fatores secundários ainda mais promissores. O excedente da produção podia “libertar” boa parte da população da necessidade de cultivar pessoalmente sua própria comida. Alguns podiam virar artesãos, outros sacerdotes – e os mais espertalhões poderiam montar a primeira pirâmide social da história, virando chefes.

Especialização cultural e tecnológica e hierarquização da sociedade são, portanto, alguns dos frutos de segunda estação da vida pós-agricultura. Há mais, porém. Criar animais no mundo pré-moderno significa um contato muito próximo com os bichos. Esse contato permitiu a transmissão de microrganismos das vacas, ovelhas, cabras e cavalos para nós – micróbios que são os ancestrais das piores doenças infecciosas da história, como a varíola, a tuberculose, a gripe e o sarampo. A população densa de humanos possibilitou que essas doenças virassem as primeiras epidemias assassinas – antes, um surto de doença não tinha como viajar a grandes distâncias, porque a baixa densidade demográfica dos caçadores-coletores efetivamente barrava a transmissão epidêmica de um grupo a outro. Agora, porém, os microrganismos tinham uma vasta colheita humana a ceifar.

Ao longo do tempo, porém, as tribos de agricultores tendiam a desenvolver resistência às epidemias – quando não tinha imunidade morria, e quem sobrevivia passava essa imunidade a seus descendentes. De quebra, os bichos domésticos também puxavam arados que aumentavam a eficiência agrícola, melhoravam a qualidade da dieta, forneciam couro e outras matérias-primas e ainda funcionavam como tanques de guerra, como no caso dos cavalos.

8 comentários em “Acaso geográfico explica diferenças étnicas

  1. Depois de tudo isso só posso lhe dar os parabéns. Nessa mesma linha de raciocínio então o que podemos dizer sobre as cotas para negros nas universidades? Melhor nem começar, não é!

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  2. Mariana, não basta apenas facilitar o ingresso na faculdade, quando temos um sistema de aprovação automática nos níveis Fundamental e Médio.

    Muito melhor seria melhorar o ensino básico e médio para que alunos de todas as classes tenham igualdade de condições de prestar um vestibular.

    Afinal, também existem negros e pardos com condições financeiras que não beiram a linha da pobreza e temos brancos que estão abaixo dela.

    Só acho curioso o fato de ninguém ter falado nada a respeito dos índios e os descendentes asiáticos. Será que estes não são brasileiros também?

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  3. Muito bom o texto e o site também, parabéns.
    Concordo com vc André sobre as cotas, um estudante que passa numa faculdade através delas não tem condição de acompanhar os outros alunos já na faculdade.Minha mãe é professora e quando eu vejo as provas dela constato que seus alunos são analfabetos funcionais, esse sistema de aprovação imediata é nocivo aos estudantes.

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  4. Pois é, João.

    O mesmo acontece nas escolas particulares. Os alunos passam pq são “clientes” e os diretores não os contrariam.

    No final, professor que reprova muito, acaba ‘”reprovado”.

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  5. Verdade, nas escolas particulares acontecem exatamente o que vc falou, mas a formação ainda é um pouco melhor em geral de alunos de escola particular.

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  6. A Seleção Natural explica. Os mais adaptados ao meio, quando começou a haver a migração de seres humanos) fez com que diferenças se mantivessem onde facilitava a vida.

    Por exemplo, em lugares muito abrasados pelo sol, os indivíduos de pele escura tinham melhor adaptação a isso, já que o ácido fólico, importante para o desenvolvimento dos fetos, é destruído por causa da luz ultravioleta.

    Com a pele escura, ela absorve maiores quantidade de luz solar, impedindo que a luz UV penetre mais na pele.

    Em locais onde há menor incidência de luz do sol, a pele mais clara é melhor adaptada, pois permitirá melhor absorção de luz, facilitando o metabolismo da Vitamina D.

    Mas estes são apenas dois exemplos para vc entender o processo.

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